Lindanor Celina I – fotograma do Círio

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Imagem da Exposição Portas abertas para Lindanor Celina. Foto: Relivaldo Pinho

Neste mês de outubro Lindanor Celina completaria seu centenário. Em 1983 ela publicaria Pranto por Dalcídio Jurandir: memórias, o livro que rememora sua amizade com o escritor que foi seu “Mito”. Em um trecho representativo dessa obra, ela une o Círio e a chegada de um grupo de escritores a Belém. Tem-se, em poucas linhas, um certo espírito de uma época, não apenas de um grupo de pessoas, mas, se quisermos, da vivência de uma manifestação e de uma literatura.

Eneida de Moraes era o cicerone do grupo. Estamos no início da década de 1960 e a chegada dos literatos marca, também, a apresentação de Celina a Dalcídio no Aeroporto de Val- de-Cans. “Tinha diante de mim, em carne, osso e morenice, o meu Mito”, escreveria. O grupo, depois, se reuniria para o evento:

“O Círio. Encontramo-nos todos na sede do IBGE, na Avenida Nazaré, em frente ao prédio onde na época funcionava a minha repartição, a Justiça do Trabalho.  Ali fomos ver a Santa passar. Dalcídio, Jorge e Zélia Amado, José e Luiza Condé, Mauritônio Meira, Eneida. Jorge Amado tão novo – parecia novo – e Zélia uma bonita moça, viçosa. Mauritônio lançara recente um livro, ‘Passagem para amanhã’ [1959]. Alguém – calo? cito? – a quem falei nisso, disse, um risinho mordaz: ‘não passa!’. Coisas”.

Pode-se ver nesses trechos parte do estilo literário de Celina. O livro memorialístico, meio elegia, meio ode, traz o rememorar que conduz a narrativa quase sempre com uma tonalidade literária que a aproxima, ladeando, um texto romanceado. Esse entrecruzar estilístico e temático ganha toda sua coreografia descritiva na rememoração do Largo de Nazaré:

“Mas os dias eram de festa. Há quantos anos não ‘curtíamos’ o Largo, Durval e eu, como fizemos noites encarrilhadas acompanhando o bando todo? Provávamos de todas as comidas, todos os carurus, os vatapás, tacacás, mingaus, tudo. Vez em quando Dalcídio se perdia de nós, desgarrava-se como por encanto, de propósito? Depois de corrermos seca e meca, revirarmos o arraial de ponta a ponta, até o chamado ‘cu-da-festa’, atrás dele, Eneida danada brabitando: ‘Dalcídio é buurro! – íamos dar com ele sozinho, aluado, olhando para ontem ou atento a alguma pequena cena, em geral interiores: cozinhas das barraqueiras, panelas, potes, cuias, cacarecos, fogareiros, aluás, paneiros de carvão. Desculpava-se sem jeito: ‘Mas eu procurei vocês…’ Eneida implacável: ‘Como tu és burro! Te perdes num Largo de Nazaré que nem uma criança’. Ele ria, fazia, meio de graça, meio a sério, um arremedo de mesura: ‘Princesa Magalona!’”

O sumiço episódico de Dalcídio no Largo e sua perda definitiva em 1979 é, para Celina, sempre uma homenagem a essa memória que, mesmo nem sempre sendo feliz nesse livro, parecia, naquela ocasião na qual “os dias eram de festa”, sempre emanar o elã de uma realidade, de um momento, inacabável.

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Imagem da Exposição Portas abertas para Lindanor Celina. Foto: Relivaldo Pinho

Lindanor Celina, de certo modo, seguiria o conselho e atitude de seu “Mito”, ao buscar na realidade e na rememoração, os elementos para suas narrações. Por isso, nela, o Círio atravessa uma afetividade da memória, uma boa memória, diríamos, que passa, em procissão, pela recordação de seu amigo e daquilo (de um espírito do evento) que com a imagem dele se entremeia e torna-se significativo.

É essa afetividade que surge no texto que abre o seu Crônicas intemporais (2003). Após 20 anos sem ver o Círio, ela se perguntaria: “O Círio se conta? Nada. O Círio se ama. Ele faz chorar de alegria, de antecipada saudade, de pena, de súplica e merci. Mais que tudo, penso, o Círio é para se dizer obrigado”. Declama a autora de Menina que vem de Itaiara (1963), o romance de estreia, que abre o tríptico da protagonista Irene, e que se completa com os desafios da jovem diante do mundo em Estradas do tempo-foi (1971) e Eram seis assinalados (1994).

Também é desafio revisitar a memória, um amigo, uma cidade. O Pranto… de Celina, que exibe o Círio em uma única página, é um fotograma de uma sequência fílmica de uma recordação maior. Atentem para o fato de que, lá, sua descrição parece que, ao focalizar o movimento, “corta”, rapidamente, cada objeto, quase assumindo a subjetividade (câmera subjetiva; olhamos pelos olhos de Dalcídio) daquele que observa o lugar.

Na breve representação de Lindanor Celina é a literatura, sua literatura, – não apenas naquele livro, muito menos somente sobre esse tema – a nos mostrar aquilo que, em multidão, ou próximo demais, pode nos escapar.

 

 

Publicado em O Liberal 04 out 2017, p. 2

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